Marcus Venícius de Brito Coelho
Secretario Estadual do LGBTSOCIALISTA de São Paulo
Com a redemocratização a partir da Constituição de 1988, a educação vinha se consolidando não somente como espaço de instrumentalização, mas também como vitrine para a percepção de injustiças sociais. A Constituição Federal de 1988, considerada a carta magma dos direitos civis, traz como eixo norteador a democracia e como desdobramentos ações que busquem implementar a mesma (BRASIL, 1988). Nesse sentido, pensa-se na construção da identidade da população Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais, (LGBT) a partir do diálogo e o pertencimento. É relevante pensar de forma crítica, na busca de diálogo na perspectiva do pertencimento que o seu grau permitirá a construção da identidade por meio de ações que considerem o protagonismo dessa população na busca de sua própria identidade e história.
Para além desse espaço, eles nos incitam a pensar, especialmente, dois pontos: primeiro, que a dinâmica dos gêneros e das sexualidades são sempre construídas e resultados de investimentos (estão nos discursos, nos artefatos, nos símbolos, nas ações, etc.) e, em seguida, que elas dizem de uma relação com o saber, com aquilo que é possível conhecer numa determinada época. Dois pontos que queremos focar nas nossas análises sem perder de vista a importância da educação nesse processo de desconstrução de discursos e imagens negativas das homossexualidades (CASTRO, FERRARI e SOUZA, 2017, p.146)
O protagonismo é pensado a partir do saber (conhecimento) dos caminhos traçados de forma positiva a partir de experiências e/ou vivências, dando a devida visibilidade a população LGBT, em especial, do saber que a partir dele possibilita a construção positiva da identidade.
Não qualquer saber, mas nos interessa a problematização das construções das homossexualidades masculinas, visto que elas dizem desse processo de fabricação dos sujeitos, que é contínuo e que tem os gêneros e seus embaralhamentos com as sexualidades como um dos organizadores sociais mais presentes nos nossos cotidianos (CASTRO, FERRARI e SOUZA, 2017, p.144)
Entendemos que a educação é o caminho mais adequado para a discussão e construção de ambientes saudáveis para entendermos diálogo, protagonismo, construção de identidade, padrão normativo. Na discussão aqui apontada, será abordada pela perspectiva da formação continuada enquanto formação humana problematizada nas relações existentes no interior da unidade que devam alcançar para além de seus muros. Paulo Freire (2005) defendia a ideia da necessidade de uma educação mais humana, problematizadora e verdadeira.
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (FREIRE, 2005, p.90.)
Estas formações, tanto a discente como a docente, estavam interligadas, traziam um grau de interdependência pautada pelo diálogo numa perspectiva humanizadora e libertadora, entendido como ação que busca entender as demandas da população LGBT.
Nossos processos de subjetivação são educativos, formas de ser que vamos aprendendo ao longo da vida, circunscritos em contextos culturais com seus saberes e poderes. Nesse sentido, todos os espaços em que circulamos são preenchidos por diferentes saberes, que ora dialogam, ora não, mas sempre investem em sujeitos de determinados tipos. Somos resultados desses processos e discursos educativos. (CASTRO, FERRARI e SOUZA, 2018, p.64)
Entende-se que a formação continuada proveniente de uma escuta sensível, tendo como eixo norteador o diálogo, requer grupo liderança, não no sentido de ter uma única pessoa a frente do trabalho, muito pelo contrário, a liderança deve ser do todo grupo.
O que exige a teoria da ação dialógica é que, qualquer que seja o momento da ação revolucionária, ela não pode prescindir desta comunhão com as massas populares. A comunhão provoca a colaboração que leva liderança a massas àquela “fusão” a que se refere o grande líder recentemente desaparecido. Fusão que só existe se a ação revolucionária é realmente humana, por isto, simpática, amorosa, comunicante, humilde, para ser libertadora. (FREIRE,2005, p.197)
A construção positiva da identidade, se dá a partir de relações estabelecidas entre os indivíduos por meio dos discursos que as influenciam, com a existência de estratégias e iniciativas que contemplem reflexões sobre a sexualidade e gênero de forma positiva, com o sentimento de pertencimento e representatividade.
Um processo educativo que responde à necessidade de inserir um novo sujeito no mundo, mas que não se limita a qualquer período da vida, estendendo-se ao longo de nossas existências. Tornamo-nos o que somos é um processo permanente e inacabado, algo que se dá na relação com as normas de gênero e sexualidade (CASTRO, FERRARI e SOUZA, 2017, p.147).
Desse modo, refletir sobre a questão da construção da identidade da população LGBT, “re-significando” seu pertencimento à sociedade, constitui questão de suma importância nesse movimento.
Olhares que vigiam, que investigam, que buscam classificar a partir de parâmetros de inteligibilidade de gênero que remetem ao binário exclusivamente masculino/exclusivamente feminino. Olhares que constituem corpos abjetos, ao enquadrá-los aparentemente, fora da norma, embora sempre em relação a ela. Olhares constituem identidades, forjadas com o outro, com aquilo que passamos a pensar sobre nós mesmos/as a partir do modo como o outro me define. Olhares que violentam, incomodam, machucam. Deixam rastros da inquietação. Olhares atentos e constantes, que funcionam como um dos tantos elementos de construção desses processos de identificação e diferenciação que se traduzem na não-binaridade de gênero (CASTRO e REIS, 2019, p.519).
A construção da identidade não começa e não se acaba na escola, é um jogo constante de construção/desconstrução/construção a partir do histórico, vivências e experiências. Ela não é linear, sofre constantes descobertas e apropriações, quanto maiores forem as relações entre pessoas de diferentes pensamentos, com posicionamentos críticos e respeitosos, melhor será a construção da identidade.
As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tem a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (HALL,2011, p.109)
A ideia da construção da identidade como algo dinâmico e participativo converge e tem consonância com algumas das discussões propostas por Axel Honneth por meio da Luta por reconhecimento recíproco, dada pela ideia de construção de padrão normativo a partir de experiências e vivências positivas pelo grupo de pertencimento, movimento esse, que busca um olhar sensível e escuta com empatia na construção do que ele chama de o “eu generalizado”, constituído por atitudes e padrão normativo dado por uma ação coletiva a partir da perspectiva do grupo.
Por serem consideradas, em termos sociais, como desviantes da norma binária de gênero, as pessoas trans são consideradas, em nossa sociedade, como abjetos, pois rompem e colocam sob suspeita a heteronormatividade e o sistema de intelegibilidade. Assim, ao pensarmos sobre as existências trans e seus trânsitos, detectamos o quanto ainda hoje essas são invisibilziadas, não reconhecidas e, até mesmo, excluídas de muitos espaços sociais, como o meio científico, foco deste estudo. Nosso questionamento é: por que, ao buscar, na internet, pessoas trans na pesquisa científica, esse movimento não nos indica, em um primeiro momento, a nomes de pesquisadoras e de pesquisadores trans que atuam na ciência? (MELLO, MAGALHÃES, 2020, p.227).
O trabalho do educador requer que ele refletia sobre a própria prática por meio da teoria e a partir de reflexões e estudos. Nesta perspectiva, na medida em que os educadores vinham reafirmando seus compromissos e por meio de suas buscas, atendendo suas demandas individuais e coletivas, estabelecendo interações com seus pares, e assim se constituindo enquanto equipe. Essa inter-relação pautada no diálogo entre o indivíduo e o grupo por meio de atividades realizadas coletivamente permitiu o reconhecimento. Honneth explica como posteriormente o adulto retoma a questão do reconhecimento recíproco:
A experiência de ser considerado importante nas próprias carências, na sua capacidade de julgamento e, sobretudo, nas suas habilidades precisa ser renovada e reconstruída pelo sujeito sempre de novo na vida em grupo, para que ela não perca sua força e vivacidade na anonimicidade do outro generalizado. De certa forma, o grupo permite ao adulto que ele siga experimentando aquela postura de reconhecimento direta, ainda mediatizada por gestos e palavras, que em circunstâncias favoráveis ele podia observar durante sua infância nas reações afirmativas das suas pessoas concretas de referência, (HONNETH, 2013, p. 65).
As relações estabelecidas a partir da sexualidade e gênero, com foco no empoderamento e protagonismo da população LGBT, tendo como referencial teórico de Axel Honneth focalizam a discussão da luta por reconhecimento a partir de autoconfiança, autoafirmação e autorespeito, pautadas no amor, direito e solidariedade, sendo o amor visto a partir de relações primárias; o direito como ato legislativo que possibilita a ação no âmbito da justiça; e solidariedade como a forma mais harmoniosa de pautar e compreender a demanda e a dor do outro. Nessa direção, por meio da vivacidade na anonimicidade é criada a possibilidade da constituição do grupo, da discussão sobre opressão e da educação na luta e combate quanto à herança cultural herdada pelos colonizadores.
Assim, compreendemos que ser homem e ser mulher não está relacionado a ter um pênis ou uma vagina, uma vez que diferentes expressões de gênero se constituem a parti r de práticas discursivas e culturais, as quais extrapolam o binarismo de gênero pelo fato de a pessoa se constituir independente do sexo genital com o qual nasceu, como é o caso das pessoas trans (MELLO, MAGALHÃES, 2020, p.228).
A discussão a questão da humanização dos processos de atuação pedagógica vem atender a demanda apresentada pela população LGBT buscando estratégias a partir de recursos pedagógicos possíveis é trazer para o centro da discussão a humanização dos sujeitos levando em conta seus históricos de vida. Sobre humanização e suas possibilidades concretas de realização, Paulo Freire aponta:
Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, em reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta dolorosa constatação, que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inconclusão, que os inscreve num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão (FREIRE, 2005, p.32).
A discussão sobre humanização permite realizar uma ligação com a proposta de dar visibilidade a população LGBT, tendo em vista que o ato de colonizar entendido por Paulo Freire aponta princípios de inferiorização da população LGBT pela sociedade heteronormativa, e desta forma, há um processo de violência contra os primeiros, pensado e realizado pelos outros.
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-la como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas, (HALL, 2011, p.109).
O relacionamento entre a pessoa e o mundo permite a ela se conhecer e ao mundo, o que possibilita a construção de sua identidade social e pessoal. Quando se permitia a oportunidade de a criança ter experiências positivas em relação à sua identidade, ela teve sucesso na sua construção, e assim a uma alta autoestima, possibilitando a visibilidade da população LGBT a partir de uma tessitura de reflexões, experiências e vivências sobre sexualidade e gênero.
REFERÊNCIAS
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FERRARI, A. ; SOUZA, M. L. ; CASTRO, RONEY POLATO DE . Fazendo e desfazendo gênero em Billy Elliot. LEITURA: TEORIA E PRÁTICA, v. 36, p. 51-67, 2018.
FEIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 48ª Reimpressão, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.
_________Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, 62 ª ed – Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2019.
_________ Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido, 27ª ed. São Paulo/ Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
_________ Por uma pedagogia da pergunta. Paulo Freire, Antônio Faundez; revisão técnica e tradução do texto de Antônio Faundez, Heitor Ferreira da Costa – 7 ed. Ver. Ampl. Atual. – São Paulo: Paz e Terra, 2011.
HALL, Stuart. Identidade e diferença, a perspectiva dos Estudos Culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2011.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento, a gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo, Editora 34, 1992.
_________ O eu no nós: reconhecimento como força motriz, Sociologias, Porto Alegre, ano 15, nº 33, mai./ago. 2013.
MELLO, Yasmin Teixeira, MAGALHÃES, Joanalira Corpes – INSERÇÃO, RECONHECIMENTO E VISIBILIDADE DE PESQUISADORAS/ ES TRANS NO MEIO ACADÊMICO E CIENTÍFICO, Revista Humanidades e Inovação v.7, n.27, 2020.
MOURA,Ismarina Mendonça de, MILANEZ. Nilton POLÍTICAS DE MORTE: O CORPO DO SUJEITO TRANS NA PANDEMIA, Revista Humanidades e Inovação v.7, n.27, 2020
REIS, N. ;CASTRO, RONEY POLATO DE. Narrativas de experiências na não-binaridade: discutindo gênero, identidades e diferenças. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, v. 4, p. 504-520, 2019.
RODRIGUES, Évelin Pellegrinotti, RIBEIRO, Paula Regina Costa RIZZA, Juliana Lapa – GÊNEROS E SEXUALIDADES NOS ESPAÇOS EDUCATIVOS: EM FOCO ENUNCIAÇÕES DE ESTUDANTES DO ENSINO SUPERIOR , Revista Humanidades e Inovação v.7, n.27, 2020.